sexta-feira, 29 de outubro de 2010

MATANDO O TEMPO NUMA BALSA

MATANDO O TEMPO NUMA BALSA

Por: Santiago Carvalho


Cada cidadão que atravessa a baía de Guaratuba utilizando-se do Ferry Boat ou balsa (serviço atualmente prestado e explorado comercialmente pela empresa privada F. Andreis) não paga apenas a tarifa (alguns nem pagam), mas sofre a extorsão de outro bem muito mais precioso, cada vez mais escasso e valioso: o tempo.
É inadmissível que um trajeto de pouco mais de um quilômetro consuma de cada pessoa, num raro dia de sorte, no mínimo vinte minutos. Isso, se não houver fila, se a pessoa (a pé ou em veículo próprio) embarcar assim que chegar ao porto, se o Ferry ou balsa zarparem rápido e se o tempo estiver bom (sem ondas altas, maré forte, chuva, ventos intensos ou neblina, pois tudo isso atrapalha e atrasa, ou até impossibilita a travessia).
Na prática, o tempo médio que uma pessoa leva, rotineiramente, num horário de pouco movimento, é de trinta a quarenta minutos. Isso sem considerar condições pontuais, porém infelizmente comuns, que fazem a travessia demorar mais, como horários de pico (sentido centro Cabaraquara-Guaratuba às dezoito horas) ou então as temidas filas, devido aos feriados ou durante a temporada, que se estendem por centenas e centenas de metros, chegando por vezes a quilômetros. E quando é noite, a situação se agrava ainda mais: há menos embarcações em operação, o que ocasiona um tempo de espera no porto de dez, vinte, trinta, às vezes mais minutos. De meia-noite às seis da manhã, então, só há travessia a cada uma hora e meia. Isso, se o tempo estiver bom, porque, se vier a temida neblina... por questões de segurança (SIC) não há travessia. Verdadeira limitação ao direito constitucional de livre locomoção no território nacional em tempo de paz, cláusula pétrea da nossa Constituição, preconizado no art. 5º, inciso XV.
Utilizei o serviço quase que diariamente, durante o ano de dois mil e nove e primeiro semestre de dois mil e dez. Residia em Matinhos, e estudava em Guaratuba, de segunda à sexta. A aula iniciava-se às dezenove horas. Minha residência ficava a aproximadamente onze quilômetros da faculdade. Para não ter o risco de me atrasar, eu tinha de sair de casa, no máximo, às dezoito horas. Utilizava motocicleta (para não pegar fila no porto). Num local com poucos veículos, pavimentação asfáltica razoável, praticamente sem semáforos, com veículo próprio, gastar uma hora para uma distância tão curta é um absurdo, uma desproporção. Se saísse de casa lá pelas dezoito e quinze, tinha que contar com a sorte para embarcar a tempo de estar às dezenove horas na faculdade. Por várias vezes fiquei dando “tchauzinho” para o Ferry. Ou saía de casa às dezoito horas ou era arriscado entrar em sala de aula somente lá pelas dezenove e quinze, com a aula já iniciada e algum conteúdo perdido.
Após as aulas, voltar para casa não era mais fácil: o horário das aulas era até as vinte e duas e quarenta, e por muitas vezes atingia esse horário. Havia um Ferry/balsa que zarpava exatamente às vinte e duas e quarenta! Parecia combinado para que, mais uma vez, eu e mais alguns alunos ficássemos no porto, assistindo a um Ferry fazer lentamente a travessia, enquanto nós ficávamos com cara de cachorro que perdeu a mudança, aguardando seu retorno.
Houve uma vez em que parei para comprar o ticket, o Ferry estava atracado. No tempo de pagar, pegar o papelzinho e o troco, coisa de segundos, ele zarpou. A sensação de impotência que senti, vendo-o sair, e eu ficando, com o bilhete na mão, é indescritível. Sabia que teria que esperar o a travessia lenta, ficar um bom tempo no porto do outro lado da baía, voltar da mesma maneira modorrenta, para então eu poder embarcar. Ficar mais uns quinze, vinte, às vezes vinte e cinco minutos esperando pela boa vontade do comandante daquela coisa. Zarpar. Fazer a travessia, com toda a calma do mundo, e finalmente atracar do outro lado. Desse jeito, eu chegava em minha casa por volta das vinte três e quarenta, às vezes até mais tarde que isso.
Sempre foi assim: se eu assistisse à aula até o final, tinha que sujeitar-me a isso. Fora o risco da sempre rondante neblina, da companhia de um frequente frio (de abril a outubro) e da não rara chuva. De moto, qualquer chuvinha vira tempestade: desconforto dobrado. Quanto mais tempo para chegar em casa, mais tempo molhado. Era uma questão de auto-preservação: vi-me obrigado a retirar-me das aulas diariamente às vinte e duas e trinta, privando-me de assisti-las até o final (pasmem, o horário é levado a sério naquela faculdade), por vezes perdendo conteúdo, para conseguir chegar em casa por volta das vinte três e quinze. Num trajeto que deveria demorar, no máximo, quinze minutos, eu gastava, somando a ida e a vinda, sacrificando parte da aula, uma hora e quarenta e cinco minutos por dia. Descontando meia hora (quinze para ir, mais quinze para voltar), eram subtraídos uma hora e quinze minutos de meu tempo, diariamente. Parece pouco? As aulas eram de segunda a sexta. Foram seis bimestres. Cada bimestre tem, em média, oito semanas. Se não me falha o ábaco, isso soma trezentas horas. O que corresponde a doze dias e seis horas. De um tempo meu, que foi gasto à revelia, contra minha vontade, sem que eu pudesse fazer nada. Ah, sim, claro, eu poderia não estudar, afinal, estudar para quê? Assim não teria que ir até Guaratuba todos os dias.
Acredito que nosso tempo é valioso. Se esse tempo não nos fosse tomado à nossa revelia (pois, salvo se alguém comprar uma canoa ou algo do gênero, ou então dar uma pequena volta de aproximadamente duzentos e trinta quilômetros, com direito a dar um "oi" em Garuva e em São José dos Pinhais) poderíamos estar utilizando-o da forma como quiséssemos, poderíamos sair e chegar mais cedo em casa, curtir mais nossas famílias e entes queridos, aproveitar melhor as belezas da região, trabalhar mais, ou até ficarmos ociosos, não importa o que fizéssemos, mas seria algo que faríamos por nossa vontade, e não por necessidade de deslocamento somado à imposição de outrem. Contudo, quando o lucro de alguns fala mais alto do que as necessidades de muitos, não há democracia, e tampouco pontes ligando os interesses desses poucos privilegiados com a maioria sofredora. Maioria essa que sustenta o lucro desses poucos, através de um sistema imoral que pouco preocupa-se com os pagantes, pois é isso a que nos sujeitamos: somos pagantes. E a eles só o que interesse é que continuemos pagando. Por isso mantém as coisas como estão, perpetuando um serviço precário e ultrapassado, que é um verdadeiro atraso de vida para a população local.
Tempo custa dinheiro. Todo assalariado sabe disso. Ele não vende somente sua mão de obra, seja ela intelectual ou braçal. Ele vende seu tempo também, pois precisa cumprir a jornada de trabalho. O empresário também sabe que tempo vale dinheiro. Por isso, o compra de seus funcionários. Então, quem vai pagar pelo tempo que todos os usuários do sistema se veem obrigados a dispor pela necessidade de locomoção? O Governo Federal? O Estado do Paraná? A F. Andreis? Acredito que nenhum dos citados. Logo, quem paga são os usuários. Eu paguei com meu tempo, e com meu dinheiro, para encher o bolso de terceiros. Quem manda não saber nadar, e não ter dinheiro para comprar um helicóptero ou um barco.
E observe-se que, até agora, nem foi dito sobre o estado das embarcações. Certa vez estacionei minha motocicleta no local a ela destinado, numa das balsas, e tive o pneu dianteiro cortado num pingo de solda, que fazia parte do piso da balsa. Não chegou a furar o pneu, mas danificou-o visivelmente, diminuindo seu tempo de vida útil. Pude observar que os sinalizadores que estão afixados nas balsas, para uso em caso de emergência, estavam todos vencidos.
Se não bastasse tudo isso, aquela corrente que é passada no Ferry, após a entrada dos carros, é uma piada, não há proteção para os usuários, já houve casos de veículos e de pessoas que caíram da embarcação, com morte. Não há sanitários nas embarcações, e os que existem nos portos não podem sequer ser chamados de precários, tamanha a sujeira e insalubridade que lá encontrei, nas vezes em que me vi obrigado a utilizar algum deles. Os motores a diesel, tanto os de alguns Ferry quanto os de alguns rebocadores que impulsionam as balsas, parecem à lenha, lembrando as antigas marias-fumaça, soltando uma fumaça negra que qualquer pessoa que tenha uma noção básica de mecânica diesel ou de proteção ao meio ambiente sabe que não é normal, tampouco lícito. Num local de preservação ambiental como a APA (Área de Proteção Ambiental) de Guaratuba, admira-me muito que as autoridades permitam o funcionamento dessas máquinas, que, ao que parece, emitem muito mais poluentes do que o permitido pela legislação nacional, causando poluição do ar. Em que pese os empregos gerados de forma direta, não há justificativa para a manutenção desse precário serviço, utilizando-se desse argumento, pois uma economia mais desenvolvida absorveria rapidamente esta mão de obra. E, num Estado Democrático de Direito, os interesses de uma minoria não podem prevalecer sobre os interesses e as necessidades da coletividade.
Não estamos falando de uma grande metrópole, ou de cidades onde pessoas perdem horas para chegar aos seus destinos devido à superpopulação, aos meios de transporte saturados, aos congestionamentos e outros problemas. Problemas esses que não temos em Guaratuba. Há uma solução. Ela foi inventada há mais de dez mil anos, antes mesmo da chegada do homem às Américas. Ela chama-se ponte.
Enfim, faz-se necessário resolver a situação o quanto antes. Da forma como é feita hoje, a travessia da baía de Guaratuba é um verdadeiro atraso para a cidade e à região. Toma o tempo de todos que a utilizam, para o benefício único e exclusivo de um pequeno grupo, que lucra com a exploração comercial da atividade. Direitos constitucionais como o de livre locomoção no território nacional no tempo de paz, assim como o direito à dignidade humana, à segurança, ao bem-estar e ao desenvolvimento, entre outros, devem ser respeitados. A manutenção desse serviço de travessia, da forma como é feito, é uma afronta a esses princípios. E a construção de uma ponte trará a solução.


Obs:
1 − O texto acima nasceu da intenção de fazer um comentário ao primeiro post deste blog, mas, em virtude da desfaçatez de quem faz vista grossa aos problemas, e pior, de quem lucra com eles, a minha indignação serviu de inspiração para esta explanação.
2 – O texto não cita nomes, e o autor não tem intenção de ofender ou menosprezar ninguém, apenas deseja o melhor para a cidade de Guaratuba e região, e a construção de uma ponte.
3 – Toda e qualquer semelhança com casos reais não é mera coincidência, é a pura constatação de fatos ocorridos.


Santiago Carvalho

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